"Morrer pela liberdade é mais nobre do que viver à sombra da débil submissão, pois aquele que abraça a morte com a espada da verdade na mão se eternizará com a eternidade da verdade,pois a vida é mais fraca que a morte,e a morte é mais fraca que a verdade".
Gibran Khalil, em 'MORTO ESTÁ MEU POVO'
***
MORTO ESTÁ MEU POVO
(escrito no exílio durante a fome na Síria)
PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL
Meu povo se foi, mas eu ainda existo,
lamentando-o em minha solidão...
Mortos estão meus amigos,
e em sua morte minha vida nada é
senão um grande desastre.
As colinas de meu país estão submersas
em lágrimas e em sangue,
pois meu povo e meus seres amados se foram,
e eu estou aqui
vivendo como vivia quando meu povo e meus seres amados
estavam gozando a vida e a dádiva da vida,
e quando as colinas de meu país
estavam abençoadas
e mergulhadas na luz do Sol.
Meu povo morreu de fome
e os que não pereceram de inanição
foram massacrados pela espada.
E eu estou aqui, nesta terra distante,
vagando no meio de um povo alegre
que dorme sobre camas macias
e sorri para os dias,
enquanto os dias sorriem para as pessoas.
Meu povo morreu de uma morte sofrida e vergonhosa,
e aqui estou eu, vivendo na fartura e na paz...
Esta é a funda tragédia sempre encenada
sobre o palco de meu coração
Poucos se importariam em assistir a esse drama,
pois meu povo é como os pássaros
com asas quebradas, deixados para trás pelo bando.
Se eu estivesse esfaimado
e vivendo no meio do meu povo faminto,
e perseguido no meio de meus conterrâneos oprimidos,
o fardo dos dias negros seria mais leve
sobre meus sonhos inquietos,
e a escuridão da noite seria menos escura
diante de meus olhos ocos,
de meu coração em pranto, de minha alma ferida.
Pois aquele que compartilha
as dores e a agonia de seu povo
sentirá um conforto supremo,
criado somente pelo sofrimento no sacrifício.
E estará em paz consigo mesmo
quando morrer inocente com seus amigos inocentes.
Mas não estou vivendo com meu povo faminto e perseguido,
povo que caminha em procissão de morte rumo ao martírio...
Estou aqui, do outro lado do oceano largo,
vivendo à sombra da tranqüilidade
e ao brilho solar da paz...
Estou diante da arena terrível e dos desgraçados
e não posso me orgulhar,
nem sequer de minhas próprias lágrimas.
O que pode fazer um filho exilado por seu povo moribundo,
e qual o valor para este povo
da lamentação de um poeta ausente?
Se eu fosse uma espiga de trigo crescida na terra de meu país,
a criança faminta me arrancaria
e com meus grãos afastaria de sua alma
a mão da morte
Se eu fosse um fruto maduro no pomar de meu país,
a mulher esfomeada me colheria
e sustentaria sua vida.
Se eu fosse um pássaro voando no céu de meu país,
meu irmão famélico me caçaria
e afastaria, com a carne de meu corpo,
a sombra do túmulo de seu corpo.
Mas, ai de mim!
Não sou um grão de trigo
crescido nas planícies da Síria,
nem uma fruta madura nos vales do Líbano.
Esta é minha desgraça, esta é minha muda calamidade
que traz humilhação à minha alma
diante dos fantasmas da noite...
É a tragédia dolorosa que retesa minha língua,
amarra meus braços e me prende,
usurpado de poder, de vontade e de ação.
É a maldição que arde sobre minha cabeça,
diante de Deus e diante dos homens.
E frequentemente me dizem:
"O desastre de teu país não é nada
ante a calamidade do mundo,
e as lágrimas e o sangue vertidos por teu povo
não se comparam aos rios de sangue e lágrimas
derramados a cada dia e cada noite
nos vales e planícies da Terra..."
Sim, mas a morte de meu povo
é uma acusação silenciosa, é um crime
concebido pelas cabeças de serpentes invisíveis...
É uma tragédia sem música e sem cenário...
E se meu povo tivesse atacado os déspotas
e opressores e morrido como rebelde
eu teria dito: "Morrer pela liberdade é mais nobre
do que viver à sombra da débil submissão,
pois aquele que abraça a morte com a espada da verdade na mão
se eternizará com a eternidade da verdade,
pois a vida é mais fraca que a morte,
e a morte é mais fraca que a verdade".
Se minha nação tivesse participado
da guerra de todas as nações
e tivesse morrido no campo de batalha,
eu diria que a tempestade furiosa, com seu poder,
quebrara os ramos verde,
e a morte violenta sob o pálio da tempestade
é mais nobre do que o perecimento vagaroso
nos braços da senilidade.
Mas não houve resgate das mandíbulas fechadas...
Meu povo caiu e chorou com o lamento dos anjos.
Se um terremoto tivesse rasgado meu país em pedaços
e se a terra tivesse engolido meu povo em seu seio
eu teria dito: "Uma lei grande e misteriosa
foi acionada pela vontade da força divina,
e seria uma insanidade se nós, frágeis mortais,
nos arriscássemos a sondar seus segredos profundos..."
Mas meu povo não morreu em rebelião,
não foi morto no campo de batalha,
nem um terremoto abalou meu país e devorou meu povo.
A morte foi seu único resgate
e a fome foi seu único despojo.
Meu povo morreu na cruz...
Morreu enquanto suas mãos
se estendiam para o Oriente e para o Ocidente,
enquanto o que restava de seus olhos
ficava na escuridão do firmamento...
Morreu em silêncio,
pois a Humanidade tinha fechado seus ouvidos
ao lamento de meu povo.
Morreu porque não compactuou com o inimigo
Morreu porque amava seus vizinhos
Morreu porque confiou em toda a humanidade
Morreu porque não oprimiu seus opressores
Morreu por ter sido as flores esmagadas
e não os pés esmagadores
Morreu porque era obreiro da paz
Morreu de fome numa terra rica de leite e mel
Morreu porque os monstros do inferno se ergueram
e destruíram tudo o que crescia nos campos
e devoraram as últimas provisões dos celeiros...
Morreu porque as víboras e os filhos das víboras
cuspiram seu veneno por todo o espaço
onde os Cedros Sagrados, as rosas e os jasmins
exalam sua fragrância.
Meu povo e teu povo, meu irmão sírio, estão mortos...
O que se pode fazer pelos que estão morrendo?
Nossa lamentação não aplacará sua fome
e nossas lágrimas não saciarão sua sede
Que podemos fazer para salvá-los
das garras de aço da fome?
Meu irmão, a ternura que te impele
a dar parte de tua vida a qualquer humano
que está prestes a perder sua vida
é a única virtude que te torna digno
da luz do dia e da paz da noite...
Lembra, meu irmão,
que a moeda que deixas cair
na mão ressequida que se estende na tua direção
é a única cadeia de ouro que prende teu rico coração
ao coração amoroso de Deus...
Gibran Khalil Gibran
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