quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Submissão e Uso da Razão

ARTIGO V


SUBMISSÃO E USO DA RAZÃO

I

A última tentativa da razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam. Revelar-se-á fraca se não chegar a conhecer isso. É preciso saber duvidar onde é preciso, afirmar onde é preciso, e submeter-se onde é preciso. Quem não faz assim não entende a força da razão. Há os que pecam contra esses três princípios, ou afirmando tudo como demonstrativo, não precisando ser conhecido por demonstrações; ou duvidando de tudo, não precisando saber onde é necessário, submeter-se; ou submetendo-se a tudo, não precisando saber onde é necessário julgar.


II

Se se submete tudo à razão, a nossa religião nada terá de misterioso nem de sobrenatural. Se se contrariam os princípios da razão, a nossa religião será absurda e ridícula. A razão, diz Santo Agostinho, nunca se submeteria, se não julgasse que há ocasiões em que deve submeter-se. É, pois, justo que se submeta quando julga que deve submeter-se.


III

A piedade é diferente da superstição. Sustentar a piedade até à superstição é destruí-la. Os hereges nos acusam dessa submissão supersticiosa. É fazer aquilo de que nos acusam (exigir essa submissão nas coisas que não são matéria de submissão).

Não há nada tão conforme à razão como a retratação da razão (nas coisas que são de fé e nada tão contrário à razão como a retratação da razão nas coisas, que não são de fé). Dois excessos: excluir a razão, só admitir a razão.


IV

Diz bem a fé o que não dizem os sentidos, mas não o contrário do que vêem estes. Ela está acima e não em oposição.

V

Se eu tivesse visto um milagre, dizem eles, converter-me-ia. Como afirmam que fariam o que ignoram? Supõem que essa conversão consista numa adoração que se faz de Deus como um comércio e uma conversão tal como a imaginam. A conversão verdadeira consiste em aniquilar-se diante desse Ser universal que tantas vezes tem sido irritado e que pode perder-vos legitimamente a todo momento; em reconhecer que não se pode nada sem ele, e que nada se mereceu dele senão a perda de sua graça. Consiste em conhecer que há uma oposição invencível entre Deus e nós, e que, sem um mediador, não pode haver comércio.


VI

Não vos admireis de ver pessoas simples crer sem raciocínio. Deus lhes dá o amor a ele e o ódio a si mesmo. Inclina-lhes o coração a crer.

Nunca se crerá com uma crença útil e de fé se Deus não inclina a isso o coração; crer-se-á desde que ele o incline. É o que bem conhecia Davi quando dizia: inclina cor meum, Deus, in testimonia tua(9) (Salmo CXIX, 36).

VII

Os que crêem sem ter lido os Testamentos é porque têm uma disposição interior tão santa que o que ouvem dizer da nossa religião lhe é conforme. Sentem que um Deus os fez. Só querem amar a Deus, só querem odiar a si mesmos. Sentem que não têm por si mesmos a força para isso, que são incapazes de ir a Deus e que, se Deus não vem a eles, não podem ter nenhuma comunicação com ele. E ouvem dizer, em nossa religião, que é preciso amar somente a Deus e odiar somente a si mesmo; mas, sendo todos corrompidos e incapazes de Deus, Deus se fez homem para unir-se a nós. Não é preciso mais para persuadir homens que têm essa disposição no coração e que têm esse conhecimento do seu dever e de sua incapacidade.


VIII

Os que vemos tornarem-se cristãos sem o conhecimento das profecias e das provas não deixam de julgá-las tão bem quanto os que têm esse conhecimento. Julgam-nas pelo coração, como os outros as julgam pelo espírito. É o próprio Deus que os inclina a crer, e assim estão eles muito eficazmente persuadidos.

Confesso que um desses cristãos que crêem sem provas não terá, talvez, com que convencer um infiel que lhe alegar tal coisa. Mas, os que conhecem as provas da religião provarão sem dificuldade que esse fiel é verdadeiramente inspirado por Deus, embora não possa prová-lo ele próprio.

Blaise Pascal, em "Pensamentos"

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